domingo, 31 de maio de 2015

Dança Baixa

Desde sua criação em 2000, a Cia dos Pés propõe em seu projeto poético, a valorização da singularidade de cada dançarino, estando esta perpassada por sua história pessoal e pelas teias de significados que integram a sua cultura. Nesta direção, os princípios da educação somática têm sido nossos aliados, somados à arte do movimento de Laban e as referencias da cultura de tradição popular do Brasil. Com relação a esta última, nossos interesses recaem enfaticamente sobre os modos de operar dos artistas brincantes.
Dança baixa é o nome atual do espetáculo Encontros desenvolvido pela Cia dos Pés desde 2010. Embora o termo Dança baixa tenha surgido em meio ao processo de criação e  transformação de Encontros, apenas em 2015, após a realização da circulação deste espetáculo pelo nordeste e pelo interior de Alagoas, pudemos amadurecer e firmar a ideia de que Dança baixa seria um título que diria mais sobre a obra em sua versão atual.  
O ponto de partida do processo de criação foi o próprio momento da Cia. em 2010 quando se reestruturava com um novo elenco. A ideia de investir no valor de um encontro humano partindo da perspectiva de que o encontro entre diferenças potencializa a criação, tornou-se a base para o desenvolvimento do trabalho. 
Neste momento inicial do processo de criação, situamos e discutimos os vários sentidos dos encontros: o encontro consigo mesmo na descoberta de seus limites e potencialidades; o encontro com os companheiros de trabalho e as possibilidades de aprendizado em meio ao processo de criação coletiva; o encontro com as referências culturais alagoanas; o encontro com o público capaz de gerar novas perspectivas sobre o espetáculo, sobre a dança, sobre a vida e sobre o mundo. Deste ponto de partida nos lançamos à questão sobre que tempo e qual tempo destinamos em nossas vidas para estarmos em nós e para estarmos com o outro. Daí resultou uma versão para os espaços urbanos, que foi apresentada nas ruas do centro de Maceió e em cidades do interior do estado e posteriormente adaptada para pátios de escolas públicas. A partir das questões emergentes dessa relação direta com o público, surgiu uma segunda versão, como ação performativa, que consideramos parte do nosso processo de criação mas que ganhou vida própria e portanto um título em particular: “Você tem tempo para ouvir minha história”? O aprofundamento no processo investigativo levou a necessidade de um mergulho na intimidade de cada dançarino/a que implicou também na intimidade do espaço, levando o espetáculo para um recinto fechado, configurando-se então uma versão mais próxima da que apresentamos atualmente, no sentido que consideramos este, um espetáculo sempre em processo de transformação.
Nos propusemos a tecer um diálogo com a alteridade frente às múltiplas redes que existem no mundo contemporâneo e chegamos a uma dimensão ética e política que sedimenta a noção de Dança baixa que veiculamos através do processo de criação deste espetáculo e seus desdobramentos. Várias ideias e conceitos permeiam a elaboração dessa Dança baixa em construção: A noção de “literatura menor” proposta por Deleuze e Guatarri, a “inutilidade da poesia” dita por Manoel de Barros e o “pensamento abissal” de Boa Ventura de Souza Santos. Destacamos ainda, o diálogo com o texto de André Lepecki “Planos de composição”, este que colabora de modo mais direto agora, na elaboração desta escrita.
Sem ter a pretensão de sintetizar o pensamento complexo desenvolvido por Lepecki, recortamos a noção de um plano de composição pautado em uma política do chão que se proponha a uma arqueologia do chão histórico da dança olhando-a do ponto de vista que nos é particular, isto é, a partir do lugar geográfico e histórico-cultural em que nos fizemos humanos: Interior de Alagoas – Maceió - Brasil. Do próprio diálogo da dança contemporânea com as danças tradicionais e populares, ao qual nos propomos, várias questões emergem e muitos tropeços ocorrem neste chão.
Lepecki apresenta ainda, a noção de matérias fantasmas proposta pela socióloga americana Avery Gordon, como sendo todas as matérias provenientes dos fins que ainda não terminaram (o fim da colônia que não terminou com o colonialismo, por exemplo) que fazem “o passado reverberar e atuar como contemporâneo no presente”. Gordon considera também como matérias fantasmas todos aqueles “corpos impropriamente enterrados da história”. Poderíamos usar como exemplo aqui o corpo das danças das tradições populares em relação à formação do dançarino cênico brasileiro?
Tais ideias nos ajudam a traduzir as proposições de nossa Dança baixa que, utilizando-se de uma noção estrutural muito básica, de investigação de movimentos mais próximos ao chão em diálogo com os repertórios da tradição popular, elaboram planos de composição em uma ordem “discursiva” que parecem afirmar, explicitar e não desviar e nem remover as reverberações do passado no presente. Por um lado, estando abertos a aceitar as matérias fantasmas que sobrevivem em nós e, por outro, desenterrando os tocos de uma ancestralidade cinética que vive em nós. Nos propomos a tropeçar em todos os tocos que emperram nossos passos mas não para dar continuidade aos fins sem término, mas para fazer dos tropeços potencias de inventividades.

Como exercício de uma política do chão, colocamos a questão das diferenças e das referencialidades culturais no centro do processo criativo, implicando em abordar possibilidades de investigação da cultura por meio da dança. Ao mesmo tempo, implicando na tomada de consciência sobre os processos de conectividade entre dança, ambiente e cultura. Estas são as proposições da nossa Dança baixa que se traduzem em um espetáculo de dança contemporânea com duração de 45 minutos.

Um comentário:

  1. E ainda assim o tempo. O tempo abrindo as portas para o conhecimento. Antes e agora. E nessa relacao entre tempos os tocos nunca sao os mesmos, nos atingindo e provovando acontecimentos e assim conseguindo enxergar melhor a nos mesmos e a nossas questoes. E isso nao e?. So estou certo que sao os tocos, de antes e de agora, que nos constroem poeticamente como seres humanos. Essa e a beleza de estar junto. Ou melhor, de dicidir estar junto!!!!!!!!

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