TEXTOS

Quando o horizonte é o mar, as perspectivas se alargam
- A dança contemporânea em Maceió


(palestra realizada no Festival Move Berlim na Alemanha em 2011)


Telma César



Boa noite a todos. Gostaria de agradecer ao convite para participar desse festival e falar da minha alegria por estar aqui. Devo dizer que me sinto muito feliz por abordar esse tema no contexto de um festival com a dimensão do Move Berlim, não exatamente o tema da dança contemporânea, esse é sempre difícil, mas por trazer as experiências desenvolvidas em Maceió nesse campo.

Maceió é capital do Estado de Alagoas no nordeste do Brasil, localizada entre o estado da
Bahia e Pernambuco e não é a toa que trago essa localização relacional porque nossas
histórias estão imbricadas, sobretudo à Pernambuco. Não por acaso, muitas das questões
abordadas nesta comunicação estão relacionadas a aspectos ligados à nossa formação
histórico-cultural.

Precisarei percorrer um pouco a história da formação do nosso estado e localizar algumas das nossas características culturais para situar melhor o panorama atual da dança contemporânea em Maceió e, quem sabe, elucidar o sentido do título da minha comunicação.

Como sabemos, as identidades culturais são construídas a partir da percepção da alteridade, do “outro” a partir do qual, e por contraste, um grupo humano se define. Essa diferença é mais acentuada nas áreas de fronteiras, sendo, em contextos mais extremos, decorrente de conflitos prolongados ou guerras. No caso do estado de Alagoas, que aqui nos interessa de perto, esse processo só começa a se esboçar a partir de 1817, ano em que a chamada revolução Pernambucana é sufocada pelas forças militares da Coroa Portuguesa. Alagoas Nasce, então, de parte do antigo território da parte sul da antiga Capitania de Pernambuco,como consequência da punição infligida aos revoltosos pernambucanos, que, desse modo, têm seu território diminuído. Os pernambucanos vinham de uma longa tradição de conflitos, o que reforça os motivos pelos quais são eles, os Pernambucanos, tão vigorosos e conscientes de sua identidade cultural. Contrariamente, e em virtude de nosso Estado ter-se formado como dádiva da Coroa Portuguesa mais que por reinvindicação própria, o processo de formação de uma identidade cultural alagoana ainda é lento, e pouco expressivo, não se constituindo narrativas de grande apelo popular.


Essa característica histórica da sociedade fundada sobre o atual território alagoano
parece nos deixar em termos contemporâneos, mais libertos do peso das tradições,
isto é, das narrativas de tradições culturais sob as quais se evoca o passado e os
símbolos que lhe são correlatos. Ora, para a criação cultural, parece-nos, isso
apresenta aspectos interessantes, como maior tendência ao cosmopolitismo, à
inventividade, à mistura de influências etc. No campo artístico, pode traduzir uma
forma peculiar de expressão simbólica mais liberta de referenciar-se em símbolos
tomados como sendo a expressão inequívoca de formas locais. Não que elas inexistam,
mas, por conta dessa particularidade da história, não logram reclamar a mesma
natureza e fixação de contextos distintos como o acima mencionado para a história do
vizinho estado de Pernambuco. Dentre as características sociológicas que se poderia
acrescentar a esse processo, temos a ruralização como marca de Alagoas. O Estado
manteve-se um pouco acima da média nacional, em matéria de urbanização, até
meados do século XX. Essa urbanização tardia, assim, também responde, ao menos em
parte, por essa frouxidão em matéria de eleição de símbolos de representação de uma
identidade cultural, uma vez que é mais facilmente no espaço urbano que se criam e
se desenvolvem movimentos de reivindicação cívica de identidades coletivas locais.

Mais recentemente, notadamente a partir dos anos 1980 com o advento de uma
política de Estado para o desenvolvimento de uma economia do turismo, novas
retóricas ligadas ao marketing territorial deram início à formação de narrativas de
identidade cultural, ainda hoje em marcha. Esses símbolos têm sido preferencialmente
buscados na natureza (Paraíso das águas, por exemplo) bem mais que na história.
Entre outros porque os maiores e mais expressivos eventos históricos que tiveram
lugar no território ocorreram antes da emancipação de Pernambuco: a saga do
Quilombo dos Palmares, o episódio da guerra de expulsão dos holandeses em meados
do século XVII, ou, antes disso, o famosíssimo evento antropofágico envolvendo o
Bispo Sardinha pelos índios Caetés, que se tornou referencial para o movimento
modernista paulista de 1922, visto como uma espécie de marco zero da invenção
cultural do Brasil, de sua originalidade.


Aos Alagoanos, nos últimos dez anos afeitos em torno de encontrar uma alagoaneidade que satisfaça, paira a cegueira de enxergar virtudes no nosso“defeito de fabricação”, como a possibilidade de identificar-se com identidades mais voláteis, e, sobretudo no campo das artes, caracteristicamente mais livre e aberta a contaminações. Nesse sentido, penso que a dança contemporânea em Maceió tem estado a parte da construção dessa alagoaneidade, ao meu ver, forjada. Estamos abertos ao horizonte marítimo.

Ao dizer que quando o horizonte é o mar as perspectivas se alargam refiro-me a esta escolha que a dança contemporânea fez , ou vem fazendo, de abrir-se para horizontes amplos de informações, conhecimentos, influências e contaminações de várias ordens, assumindo a liberdade de ser volátil como a água e desconfigurando o imaginário da raiz, esta uma instância presa.

Uma característica identitária da cultura alagoana, segundo a Dra. em antropologia Raquel Rocha, consiste na dificuldade do Alagoano em implementar ações coletivas, o que ela denomina de tradição do isolamento, o que se explica também pela nossa falta de epopéia de criação. Em sua tese cita exemplos no campo artístico de títulos que demonstram essa idéia como os grêmios literários na década de 20 e 30 do século XX tais como “A Liga contra o Empréstimo de Livros” e os “Dez Unidos” (desunidos); nas artes plásticas dos anos 80 o “Coletivo Solitário”, etc. Penso que em Alagoas a dança de modo geral, e não só a dança contemporânea, tem caminhado na contramão dessa direção e o Curso de Dança da Universidade Federal de Alagoas tem exercido papel importantíssimo nesse sentido, como veremos mais adiante.

Um exemplo de que andamos na contramão da tradição do isolamento é a Mostra Alagoana de Dança. No final dos anos 90 muitos dançarinos que haviam saído de Maceió no final dos anos 80 retornam a cidade e trazem com eles novos modos de relação profissional. Uma dessas pessoas é a bailarina Karina Padilha , que morou em Londres (de 1989 à 1999) e que criou a Mostra Alagoana de Dança. De modo independente, foram realizadas seis edições dessa mostra contando, a partir de 2009 com o apoio e patrocínio da Secretaria de Estado da Cultura. Essa mostra reúne todas as facções de dança do estado, coloca todo mundo no mesmo espaço e isto, para o contexto local foi muito importante porque durante muito tempo em Alagoas dança para o palco era o balé clássico que é praticado por uma parcela bem definida da sociedade enquanto a periferia desenvolvia movimentos riquíssimos de dança e de lá não saiam. Essa mostra veio dar visibilidade a esses grupos periféricos. Esse espaço tornou-se então um espaço político e a partir de 2009 a Secretaria de Estado da Cultura passou a patrocinar a Mostra e a incluí-la no calendário de eventos anuais do Estado.

O Fórum Alagoano de Dança poderia ser outro exemplo. Embora sofra com questões que sei que ocorrem em outros grupos e iniciativas similares no Brasil pela falta de participação da maioria, chamo atenção para o fato de que o nosso fórum não é um fórum de dança contemporânea, mas, de dança. Temos representantes de várias vertentes, do balé clássico a dança de rua passando pelas bailarinas do ventre e etc.

Vale ressaltar aqui o papel extensionista que o Curso de Dança vem desenvolvendo no sentido de atuar junto a comunidade, sobretudo a comunidade de dança. Aproveitamos a diversidade dos alunos que ingressam no Curso para corroborar com esse processo de por em relação as várias vertentes da dança em Alagoas para trabalharmos em torno de objetivos comuns. Esses alunos advindos de grupos periféricos, de companhias e escolas de balé, da dança de salão etc.
ao passarem pelo Curso e conectarem-se com uma perspectiva contemporânea sobre o corpo e a dança, passam a exercer a função de mediadores sociais atuando na contramão da tradição do isolamento. Através de ações como a participação desses alunos na Mostra Alagoana de Dança, a realização de intervenções artísticas e projetos de extensão nas escolas públicas, esses alunos tem contribuído para a construção de um novo espaço social para a dança na cidade e para a reconfiguração da cena da dança contemporânea em Maceió. Os alunos do Curso como atividade e demanda gerada por eles incluíram a ação de reativação e redmensionamento das ações do Fórum Alagoano de Dança em uma das disciplinas. A partir daí tivemos conquistas importantes como a abertura do Secretário de Cultura para a inclusão de um representante do fórum no Conselho Estadual de Cultura.

Centrando na dança contemporânea especificamente vemos que sua história em Alagoas
sempre esteve relacionada à Universidade Federal de Alagoas-UFAL. A primeira vez que se houve falar em dança contemporânea em Alagoas foi em 1982, quando o grupo de dança
moderna da UFAL, coordenado pela Profa. Madalena Santana do Curso de Educação Física,
passa a se chamar grupo de dança contemporânea da UFAL. Isso ocorreu a partir da realização de uma oficina, que por sua vez deu origem a um espetáculo, realizada e dirigido respectivamente, pelo Professor Fernando Passos da UFBA. Esse acontecimento traz muitas novidades em termos de dança para Maceió. Em uma matéria de jornal divulgando a apresentação do resultado cênico dessa oficina, encontrava-se um texto com palavras bastante novas para aquele contexto alagoano, usadas para descrever o processo de criação do espetáculo, tais como: laboratórios de movimento, domínio e consciência do corpo, relações de espaço, tempo, improvisações livres com motivações em textos.

Em 1983 esse mesmo professor retorna para montar um novo espetáculo e após as
apresentações o grupo se desfaz. Dos integrantes desse grupo apenas eu dei continuidade a carreira na dança mas fui morar em São Paulo. Daí até o final dos anos 1990 essas palavras e termos são esquecidas nos discursos e nas praticas dos artistas cênicos locais. É a partir de 1998, através de duas professoras da UFAL, Eu e a Profa. Nara Salles, ambas atuando no Curso de Licenciatura em Teatro e no Curso Técnico Profissionalizante do Ator desta mesma Universidade, que novas perspectivas sobre o corpo cênico aparecem em Maceió. Eu influenciada pelas propostas de Klauss Vianna e Laban, principais aportes da minha formação naquele momento, recém chegada de São Paulo e a gaúcha Nara Salles, recém chegada de Pernambuco, influenciada pelo teatro físico e as idéias de Antonie Artaud.

Em 2000 criei a Cia dos Pés, a primeira Cia. de Dança Contemporânea de Maceió, após o Grupo da UFAL desfeito em 1984. Tivemos aí um hiato de 16 anos. Essa Cia. integrada por alunos do Curso de Teatro e bailarinos de formação clássica, surgiu a partir do processo de criação do espetáculo Pé, Umbigo e Coração. Este espetáculo foi um desdobramento de minha pesquisa de Mestrado. Essa idéia de dança como produção de conhecimento, resultante de pesquisa acadêmica era uma grande novidade em Maceió. Movida por uma imensa falta de interlocução, convidei a vir morar em Maceió o bailarino Jorge Schutze que passou a integrar a Cia dos Pés até 2006 quando cria a Cia. Ltda. A vinda de Jorge Schutze será fundamental para o desenvolvimento da dança contemporânea local e ele trará experiências outras como a vivência no Japão onde dançou de 1989 a 1991, a idéia de performatividade e a ocupação dos espaços urbanos. Também integraram o elenco da Cia dos Pés Valéria Nunes e Glauber Xavier.

Estes participaram apenas da montagem de Pé Umbigo e Coração deixando a Cia dos Pés e
criando, em 2001, o espetáculo Experimento Zero marcando as ações de dança do Coletivo Saudáveis Subversivos por eles instituído. Essas três Cia. então, irão configurar a dança contemporânea em Maceió.

Vale chamar a atenção para o fato de que nenhuma das três Cias possuem um elenco fixo. A Cia. dos Pés está tentando conquistar isso há pouco menos de um ano. Na verdade, sempre trabalhamos por projetos. A dificuldade por manter um grupo estável passa por algumas questões de ordem estrutural. Por exemplo, nenhum desses grupos possuem uma sede com sala para ensaios, (nesse sentido o Setor de Artes da UFAL tem sido um grande parceiro). Não há fomento local. Nosso estado é o único do Brasil que não possui uma lei de incentivo estadual e não temos também lei municipal de incentivo a cultura ou qualquer fundo de apoio a produção. Tivemos uma premiação em nível estadual em 2002, em 2007 e outra agora em 2010. Somos salvos pelos Editais regionais e nacionais e aqui vale ressaltar a política da FUNARTE que tem tornado possível a grupos de todo o Brasil terem acesso a concorrência igualitária com grupos de regiões de maior visibilidade como o sudeste por exemplo.

Contudo, há uma outra questão que não diz respeito exatamente as condições adversas de
produção e que consideramos ser muito relevante para pensarmos no fato de nenhuma das Cias. terem um elenco definido desenvolvendo um trabalho contínuo a longo prazo. Refiro-me aos modos de relação com o fazer artístico, nesse caso com a dança. Eu e Jorge Schutze, desde o início de nossa parceria em 2001 conversávamos sobre a dificuldade de autonomia criativa dos dançarinos alagoanos e essa sempre foi uma das premissas do nosso trabalho como diretores, o que consideramos ser um dos fatores da não permanência dos artistas por muito tempo no elenco das nossas Cias. A figura do diretor como centralizador sempre foi uma marca do teatro e da dança local, no caso dessa última, centrado na pessoa do coreógrafo.

Pensamos que esta questão também está vinculada a uma herança cultural muito arraigada no alagoano, pautada no senhorio. Nesse sentido, a criação do Curso de Licenciatura em Dança irá contribuir sobremaneira para uma nova configuração dessa cena.

Não por acaso, uma das características que me foi descrita por Wagner e Dirk sobre a
realidade encontrada em Maceió é que lá não existia uma figura central, a pessoa central que representasse a liderança ou referencia central. Lembro de ter lhes dito que seria muito fácil se configurar esse quadro em Maceió porque há uma tendência cultural fortíssima para a submissão. Mas esta tendência foi fortemente combatida por mim e por Jorge como figuras que deram início a retomada, se é que podemos falar assim, da dança contemporânea em Maceió em 2000. Se pensarmos no próprio nome Saudáveis Subversivos e o slogan do grupo “somos todos co-criadores” podemos verificar que essa é uma tendência uníssona na dança contemporânea local. Esta postura, acima de tudo fazia e faz parte do nosso projeto poético.

Assim como faz parte do projeto político pedagógico do Curso de Dança, que tem “saído do papel”.

O Curso de Licenciatura em Dança vem ampliando muito as perspectivas para os dançarinos da cidade. Após quatro anos da criação do Curso podemos dizer que formamos alguns interlocutores e a inserção na cena da dança local, de um modo geral tem sido bastante frutífera. Por um lado, a dança contemporânea passou a ter outro grau de aceitação por parte da comunidade de dança e por outro, gerou uma maior aproximação da arte da dança com a sociedade. A primeira Mostra Acadêmica do Curso, realizada em 2009 teve parte de suas ações apresentadas no principal shoping center da cidade (na época o único existente em Maceió).

Lá, além da exposição dos painéis dos trabalhos de pesquisa desenvolvidos pelos alunos e
professores, também fizemos uma mostra coreográfica e aulas públicas. No Dia Internacional da Dança em abril realizamos ações nas ruas já há dois anos, que foram cobertas pela imprensa local, principalmente a televisiva e nos telejornais da TV de maior audiência da cidade. Em 2010 o programa Alagoas Arte e Cultura de uma TV paga, tivemos dois programas exclusivamente com o Curso de Dança, com entrevistas com professores e alunos e apresentações dos alunos dançando.

Diferentemente da história da criação do estado de Alagoas a história da criação do Curso de Dança é possuidora de uma grande epopéia de criação e temos marcos fundantes, a meu ver, bastante significativos. Passados cinquenta anos da criação do primeiro Curso Superior de Dança do Brasil na UFBA nós fomos o primeiro estado nordestino a repetir a façanha. Digo façanha porque foi uma verdadeira batalha conseguir abrir este espaço na Universidade e aqui vale ressaltar a força de trabalho da Dra. Nara Salles. Se a construção de identidades então passa por aí, digo que estamos nos firmando cada vez mais na construção de novas configurações para os modos de relações no ambiente da dança em nosso estado. Vivemos em uma cidade onde em cada esquina que viramos, ao final de cada ladeira que subimos, o nosso horizonte é o mar! Queremos nos deixar contaminar pela sensação de infinitude que essa visão nos traz. E que os horizontes se abram porque nossas perspectivas são amplas!

Para finalizar minha apresentação gostaria de ilustrar um pouco visualmente a produção dos grupos locais.


Para que serve um festival de dança?

(texto publicado no site www.idanca.net em 2005)


Telma César*

No dicionário Aurélio, festa é reunião alegre para fim de divertimento. Festival é uma grande festa. Também reunião artística para fins de competição.

Diversão e competição parecem atributos pequenos para a dimensão artística da dança. Entendendo o papel da arte em redimensionar a condição humana e, deste modo, capaz de "colocar o conhecido em risco", proponho a revisão do significado da festa em nossas vidas e ir ao encontro do seu sentido mais ancestral e mítico, lugar onde a festa se dá como espaço de troca e re-significacão do cotidiano e do sentido da existência. Lugar onde a dança, em sua gênese, é parte constitutiva.

Pensar um festival de dança nestes termos significa pensar a troca entre sujeitos/agentes deste contexto como objeto norteador do seu sentido de existir. Até porque é a necessidade de comunicação a razão de ser da dança. Em um festival de dança, essa troca pode se dar em diferentes instâncias, a começar pela própria formulação do festival, isto é, pela sua concepção. Se um festival se diz fomentador da dança, como `e o caso do Festival Nacional Dança em Cena, que acontece em Alagoas desde 2001, seu ponto de partida deveria ser o saber daqueles que fazem dança. Assim, podemos dizer que tivemos um grande avanço na edição 2003 do referido Festival, quando, por iniciativa de Eliana Cavalcanti, houve, no encerramento, uma reunião de avaliação onde todos os artistas foram convidados. O retrocesso se deu quando este feito não se repetiu em 2004. Outro avanço foi a escolha de um curador para a edição 2004. Acredito, porém, que algumas considerações devem ser feitas acerca do papel de um curador para um melhor entendimento da importância de sua função e do respeito à sua autonomia.

É preciso pensar o papel do curador de um festival como daquele que, ao diagnosticar uma realidade, procura organizar ações em busca de uma coerência –com o quê, esta realidade diagnosticada solicita para alcançar determinado objetivo. Este objetivo devendo ser delineado de modo imparcial na direção que o diagnóstico aponta. Aqui se dá uma das primeiras instâncias de troca de um festival: O curador dialogando com a realidade local, estabelecendo caminhos que apontem para a solução de problemas de uma coletividade sem estar preso a "estéticas de linhagens" (Bravi, 2002), isto é, sem vincular as escolhas a seu gosto e interesse pessoal.

Quando me refiro a escolhas, não estou me limitando apenas à seleção dos grupos de dança que se apresentam no festival, mas de todas as ações elencadas para integrar o evento. Para se atingir todos os objetivos de um festival, é preciso que as atividades que o constituam estejam interligadas e se retroalimentem no sentido de atingir os objetivos gerais estabelecidos pela curadoria. O papel de um curador na organização de um festival de dança é fundamental e, para que ele se cumpra, é necessário que sua autonomia seja compreendida.
É função de um festival de dança fomentar a criação, facilitar a circulação de idéias e os debates de pensamento, promover o intercâmbio e, principalmente, garantir a diversidade de linguagens de movimentos sem qualquer tipo de preconceito.

Os objetivos da arte, infelizmente, não são os das instituições; daí, mais uma vez, ser preciso chamar a atenção para a necessidade do diálogo, pois, se as posições defendidas pelo curador estão referendadas pelos interesses de uma comunidade, sua força em ganhar espaço junto a essas instituições se torna muito maior – haja visto que o discurso institucional é sempre o de servir ao desenvolvimento da dança em Alagoas.

Muito tem se argumentado sobre a necessidade de contar com o patrocínio da iniciativa privada, uma vez que o governo do estado destina uma verba muito pequena à Secretaria de Cultura –sendo assim, é necessário atender aos interesses desses patrocinadores. Uma dessas exigências seria ter no festival, grupos de renome do Sudeste do país, aos quais seria necessário dispensar uma quantia relevante da verba, sobretudo, para o pagamento dos cachês.

Não vemos nenhum problema na vinda dessas companhias. A questão está na dimensão que se dá a isso. Primeiramente, se elas não cabem no recorte estabelecido pela curadoria, não se pode perder de vista o motivo comercial pelo qual estão vindo. É preciso delimitar o tamanho desse compromisso dentro do festival para que sejam resguardados os espaços para os objetivos maiores. Depois, é necessário otimizar a presença dessas companhias, ampliando os espaços de troca entre estes grupos e os artistas locais.

Outra questão é a quantidade de público a ser atingida. Ora, será que a preocupação com a quantidade tem de, necessariamente, passar pela perda da qualidade? Será preciso passar por cima dos objetivos maiores do festival para satisfazer as exigências dos patrocinadores? Então, qual o sentido de existir desse festival? O último Festival Dança em Cena foi o retrato do descuido com a qualidade em favor da quantidade. Sobretudo da qualidade das relações entre instituições e artistas. Como é possível haver troca, haver confraternização, haver reunião de interesses, preceitos primeiros de um festival de arte, quando falta consideração pelos artistas locais, anfitriões do festival e para onde se diz estão voltados seus interesses?
Se a questão é a baixa verba destinada à cultura, poder-se-ia reunir os artistas em torno da reivindicação do aumento.Talvez, para isso, fosse preciso estabelecer outro tipo de relação com os artistas. Talvez, para isso, fosse preciso definir uma política cultural.

O objetivo básico de toda política cultural seria o de dinamizar diferentes tipos de comunicação. Seu empenho seria no sentido de buscar propostas e instrumentos capazes de preservar a “unidade no respeito à diversidade dentro do próprio domínio cultural” (Santaella apud Xavier,2001).

O formato do Festival Dança em Cena em nada tem contribuído para a formação de cidadãos da dança, capazes de se sentirem responsáveis pela criação de possibilidades de desenvolvimento da arte em Alagoas. Precisamos refletir sobre as características próprias da nossa realidade sem estarmos presos a modelos de festivais existentes em outros estados. Aproveitarmos os diferentes talentos aqui existentes, posto que não se reconhecem. Pensar na importância da reverberação das ações desenvolvidas no festival, a longo prazo.

O Festival Dança em Cena tem se prendido a priorização do aspecto espetacular, destituído de toda a rede de conhecimento embutida em um sistema de produção de cultura. Tal sistema é formado por diferentes fases da ação cultural que envolve produção, distribuição, mecanismos de troca e de usufruto das obras na plenitude do entendimento de seus aspectos formais, de conteúdo, sociais e outros (Xavier,2001) e só funciona de maneira efetiva quando cada uma dessas fases estabelece comunicação.

É preciso entender a teia de relacionamentos presentes no mundo da dança na cidade de Maceió e porque não dizer no estado de Alagoas. Daí a necessidade de se investir em pesquisa. Estamos desperdiçando o fato de sermos uma comunidade de dança relativamente pequena e facilmente reconhecível como fator positivo ao nosso fortalecimento.

A dança não vive fora do contexto das relações posto que sua natureza se instaura na necessidade de comunicação, e esta se dá pela interação de vários elementos – tanto relativos a própria estrutura da linguagem da dança quanto da dança com a cultura e a sociedade como um todo. Urge reconhecer o quanto do conhecimento, das leituras de mundo, das impressões da humanidade está registrado pela arte, representado pela arte, concretizado numa obra de arte, mobilizado no fazer artístico (Marques, 2005).

Só a partir deste reconhecimento poderemos dar a dança o papel que lhe cabe na comunidade alagoana e não podemos, infelizmente, esperar que este reconhecimento parta do poder público. Somos nós, artistas, que devemos expressar nossas opiniões e, de forma organizada e conjunta, abrir nossos espaços de comunicação com as instituições. Neste sentido, alegra-nos a crescente adesão daqueles que fazem a dança em nosso estado ao recém-criado Fórum Permanente de Dança. Já em sua reunião inaugural, realizada no dia primeiro de julho deste ano, recebeu pronunciamento por escrito do secretário de estado da Cultura, reconhecendo o Fórum e se dispondo a apoiar a iniciativa. Isso demonstra a força da união e da organização de um grupo em torno de objetivos comuns. Quando pensamos juntos e colocamos nossas idéias em movimento, a dança ganha e Alagoas ganha.

REFERENCIAS


Bravi, Valeria C. Um olhar sobre a incorporação estética do movimento: dança
cênica, São Paulo/1991-2001. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da USP. São
Paulo, 2001.

Pereira, Roberto. Curso de Curadoria em Dança promovido pelo Instituto Itaú
Cultural. Recife – PE. 2001. anotações de aula.

Xavier,Jussara. A política da dança nos anos 90 em Florianópolis.
www.idanca.net (síntese da dissertacão desenvolvida no Mestrado em Comunicação
e Semiótica - PUC/SP, concluído em 2001)







* Telma César é mestre em Artes pela UNICAMP, bailarina, coreógrafa e professora de dança.

Guerreiro e identidade alagoana

(texto publicado na revista Graciliano em 2011)

                                                                                                      Telma César


O guerreiro, reconhecido por importantes estudiosos da cultura popular local, como um folguedo genuinamente alagoano, caracteriza-se, entre outros aspectos, pela sua indumentária, sobressaindo-se o uso de esplendorosos chapéus em formato de igrejas, recobertos de espelhos, miçangas variadas e brilhos, em uma profusão de cores que compõem rara beleza plástica. Este texto pretende por em discussão a utilização do chapéu do guerreiro como símbolo de identidade alagoana.
Diferentemente da maioria dos folguedos que integram as tradições populares do Brasil, é possível localizar o período histórico em que o guerreiro surge em Alagoas, na década de trinta do século vinte, podendo ser assim considerado uma manifestação relativamente jovem. Adaptando elementos dos caboclinhos e dos reisados, tem sua musicalidade definida pela base percussiva de um tambor e dos pandeiros tocados pelo palhaço e o mateus, ambos personagens do folguedo, e pela sanfona e o canto estruturando a melodia. O mestre é o principal cantor solista, acompanhado pelo coro composto pelos demais integrantes que dividem-se entre as figuras que compõem os dois cordões (filas), e os inúmeros personagens, que, em sua maioria, dançam no centro entre os dois cordões.
Um dos aspectos marcantes do guerreiro alagoano são os entremeios e as partes. Os entremeios são espécies de esquetes teatrais, encenações desencadeadas a partir de um personagem que no guerreiro são inúmeros, tais como lobsomem, jaraguá, boi, entre outros. As partessão consideradas o ponto alto do folguedo, dentre elas destacando-se a parte do índio Peri e a parte da Lira. Essas partes estruturam-se como uma espécie de opereta, com os avisos (prólogos), o desenrolar da trama central e o final.
Gustavo Quintela, médico e músico alagoano, pesquisador e estudioso do guerreiro, reconhecendo a beleza musical e poética dessa partes e, por outro lado, deparando-se com a falta de transmissão desse conhecimento, realizou brilhante trabalho de anotação das principais partes do guerreiro : a parte do índio Perí e a parte da Lira.
Vê-se que a última geração de mestres conhecedores dessas partes já se foram. Restam hoje pouquíssimos mestres que conhecem as partes e muito poucas, para não dizer nenhuma, são as oportunidades de apresentá-las, o que torna cada vez mais difícil a vida e a transmissão desse conhecimento. Em 2010 tivemos a partida de Mestre Verdilinho e mestre Jaime, em 2009 Mestra Vitória e em 2008 mestre Venâncio.
A desvitalização do folguedo é notória no estado. Sabemos que os grupos de guerreiro configuravam-se como verdadeiras trupes mambembes que excursionavam pelo interior do estado no período natalino e que também na capital abrilhantavam as festas desse período do ano. Essas trupes reuniam pessoas de diferentes idades e seus integrantes galgavam posições dentro do folguedo - a maioria deles quando falam sobre sua trajetória nesse campo referem-se ao tempo em que “entrou na profissão”., tamanho era o engajamento e comprometimento com a função de atuar no grupo. Hoje sabemos que apenas dois grupos ainda atuam no interior percorrendo as cidades da região: o guerreiro do mestre Nivaldo e o de José Laurentino. Sem estrutura e apoio esses grupos se arrastam de cidade à cidade a custa de esforços pessoais incomensuráveis.
Na capital, até a década de noventa ainda era possível ver os ensaios semanais dos grupos em bairros como chã de bebedouro e chã da jaqueira que mobilizavam a vizinhança em torno daquele acontecimento que ganhava caráter festivo e onde podíamos ver ainda a participação da juventude local. Atualmente, o que podemos observar nos poucos grupos que mantém essa pratica de ensaio semanal, é que a ação restringe-se ao grupo que ensaia, prestigiado em sua maioria apenas por pessoas idosas. Nesse sentido, a questão da continuidade da tradição fica ameaçada. Esta evasão, inclusive, tem levado os integrantes desses grupos a movimentarem-se no sentido de um grupo freqüentar o ensaio do outro de maneira a motivar a permanência dessa pratica, tão fundamental para o desenvolvimento do folguedo.
Já é possível localizar uma diminuição impressionante do número de grupos no estado. Na capital temos apenas os grupos dos mestres Benon Pinto da Silva, Juvenal Leonardo Jordão, Nivaldo Abdias Bonfim, Juvenal Domingues e o André Joaquin dos Santos que tenta manter ativo o grupo do falecido mestre Venâncio além de Nadeje que hoje coordena o grupo Leão Devorador, antes liderado por sua mãe, Maria Vitória.
Em um movimento contrário a essa situação descendente, (para não dizer decadente) da realidade acima descrita, nos últimos dez anos, é crescente o aparecimento do chapéu de guerreiro como objeto ilustrativo de produtos diversos, eventos das mais variadas áreas -de campeonato de handebol a congressos da área médica. A cerca de dez anos atrás foi construído um enorme chapéu de guerreiro, obra do artista plástico Rogério Sarmento, patrocinado por empresa privada, colocado em um entroncamento em vias de grande fluxo de trânsito de acesso a cidade. A imagem do chapéu de guerreiro tornou-se símbolo de Alagoas e de alagoaneidade. O que se percebe no entanto é que esse objeto foi totalmente deslocado de seu contexto original como um recorte, uma parte que não diz sobre o todo. Um chapéu sem cabeça.
Constata-se assim que termos uma apropriação que não alimenta a sobrevivência do objeto gerador do símbolo – o guerreiro. Nessa direção qual será o futuro deste símbolo? Simbolizar o passado?
Segundo Peter Fry (1982:52/53) “ a conversão de símbolos étnicos em símbolos nacionais não apenas oculta uma situação de dominação racial mas torna muito mais difícil a tarefa de denunciá-la” .
A perspectiva proposta pelo autor supracitado, embora toque em dimensões outras que não as específicas ao contexto aqui discutido, parece-me pertinente para pensarmos como o chapéu do guerreiro inicialmente era um símbolo de pertencimento relativo a grupos específicos atrelado ao folguedo em si, e hoje passa a ser usado como símbolo identitário de um estado. Poderíamos pensar nos por quês dessa escolha e quais as possíveis implicações dela sobre a manifestação simbolizada. Não será esta uma estratégia de ocultamento sobre a real situação na qual se encontra o guerreiro?
Uma sociedade de natureza fortemente hierarquizada como a nossa, onde as classes sociais não se misturam, essa parece ser uma apropriação injusta, sem troca, na medida em que não vemos investimentos, na mesma proporção do uso simbólico do chapéu, no sentido de alimentar a sobrevivência e desenvolvimento do guerreiro alagoano. Parece-me urgente pensarmos na implementação de ações que fomentem a vitalidade desse folguedo. A quem caberia essas ações? As políticas públicas? A cada um de nós? Quem irá colocar a carapuça, digo o chapéu, na cabeça?
A Escola como mediadora social

(texto publicado no site www.idanca.net em 2007)


Telma César[1]




A dança na escola, enquanto componente curricular ainda não é uma realidade no nosso país, apesar da Lei de 1997. Quando pensamos na presença da dança na escola, seja como disciplina ou mesmo como uma atividade muitas questões básicas ainda perduram como, por exemplo, pensar em qualdança ensinar? O universo da dança é tão amplo, a cultura humana criou tantos estilos diversos de dança, como escolher?


Nesse contexto, em meio a opiniões e realidades divergentes, em Alagoas, as chamadas danças folclóricas (às quais preferimos nos referir como danças brasileiras) costumam ser defendidas como imprescindíveis na escola. Os discursos de defesa da presença das danças brasileiras na escola geralmente justificam-se pelo fato dessas danças serem consideradas representativas das nossas “raízes culturais”;praticando-as a escola estaria cumprindo seu papel de “resgatar as tradições” e assim “fortalecer a identidade cultural” local, regional e nacional.

Levantamos, a princípio, três pontos para reflexão: Primeiro, de que modo se dá a presença das danças brasileiras na escola? Segundo, esse modo cumpre os objetivos dos discursos que justificam sua imprescindível presença na escola? E, por último, que noção de identidade esses discursos veiculam?

As danças brasileiras estão presentes nas escolas de modo eventual atendendo ao aspecto da prática da dança, do fazer constituído pela apreensão de um repertório de movimentos pré-existentes.

Os discurssos que acompanham essa prática, seja do próprio professor de dança ou dos outros professores e membros do corpo diretor encontra-se atrelado a noção de que estas danças são manifestações da nossa tradição, mantidas por mestres populares, os quais não são considerados artistas, pelo menos não como pertencentes a mesma categoria dos outros artistas integrantes da comunidade alagoana, e, como tal, devem ser mantidas em suas e , como tal que se observa é que a perspectiva histórica colocada é linear e não se relaciona com a realidade vivida pelos alunos e pelos próprios artistas populares que mantêm essas danças tradicionais. A noção de tradição veiculada neste caso, se encontra atrelada à idéia de imutabilidade, de estagnação. Tal noção afasta essas danças do status de arte e o artista popular de artista, posto que mudança, criatividade, sensibilidade ao contexto histórico e sócio-cultural circundante são atributos inexoráveis à arte e ao artista.

Que noção de identidade cultural essa visão de tradição aqui apontada veicula? Como poderia então a criança e o jovem se identificar com algo que faz parte de um passado que não se comunica com a dinâmica de seu mundo contemporâneo?

Parece-me urgente refletirmos sobre o conceito de tradição para, assim, encontrarmos um lugar para as danças brasileiras que lhes retire o “cheiro de mofo”. Um lugar que esteja distante daquela imagem de que elas são realizações de pessoas idosas, guardiões da nossa memória e do nosso passado e que, por um motivo que não sabemos com clareza qual é, precisamos ajudar a manter preservadas e inalteradas através dos tempos.

A mesma preocupação está presente quando se trata de pensar a memória. Inserida no fluxo da contemporaneidade e na dinâmica própria dos novos universos com os quais se relaciona, a exemplo do universo turístico, a memória tornou-se um“valor” e, assim, os objetos com os quais comumente se conecta (a cultura popular, os eventos históricos particulares, personagens, etc) estão igualmente sujeitos às mesmas lógicas das circunstâncias.

É preciso despertarmos para a necessidade de transformação para a permanência de uma tradição, aproximando-nos da noção de que não há vida sem movimento, cuja natureza engendra em si a alternância e convivência entre opostos: equilíbrio e desequilíbrio, permanência e mudança, etc.

(...) parece claro que se tornou impossível a abordagem do
conceito de tradição independente desse seu corolário atual
que é a ruptura; tradição e ruptura se espelham
reciprocamente, e a dialética dos dois termos
esclarece a quantas andamos nessa grande esquina
que é a história de nosso tempo ((BORNHEIM,1987, p. 29)

Entendemos ser oportuno tomarmos aqui as colocações de Bornheim quando, ao abordar o conceito de tradição, este autor chama atenção para a necessidade de considerar os aspectos contraditórios e complementares entre tradição e ruptura para podermos adentrar a complexidade das relações entre permanência e mudança no mundo contemporâneo, sobretudo quando se quer discutir a idéia de identidade.

Stuart Hall, em seu livro A Identidade Cultural na Pós-Modernidade (2004) explora a idéia de que “as identidades modernas estão sendo ‘descentradas’, isto é, deslocadas ou fragmentadas”. Sua discussão traz a tona aspectos dialéticos sobre a noção de descentramento que subsidiam a reflexão acerca do fenômeno da globalização de modo a analisá-lo em seus aspectos contraditórios, pois, se a princípio nos é sugerido a perspectiva de homogeinização das identidades, por outro lado, o global trouxe a tendência da valorização do local.

O movimeto mangue beat[2]pode ser destacado como exemplo desta tendência de valorização da cultura local sem negar o acesso a cultura universal. O mangue beat, ao contrário, relaciona-se com a diversidade e cria um outro objeto, único e original. Na medida em que fomenta a influência recíproca entre conhecimentos produzidos em diferentes contextos, históricos e sócio culturais, numa retro-alimentação contínua, o movimento mangue funciona como uma espécie de mediador social, catalisando a“atualização da tradição” ao tempo em que aproxima diferentes gerações, classes sociais e modos de operar em arte.

A natureza multicultural do exemplo acima citado poderia nos levar à discussão sobre a questão dos mercados culturais globais; não é essa a nossa intenção aqui, muito embora, seja importante chamarmos a atenção de que o professor não deve se alienar na idéia de que estes mercados, fundados em torno da noção de multiculturalidade, estão “...baseados numa etnodiversidade valorizada como simultaneamente pacífica, humanista e unanimemente “global”. (Lepecki, 2003). Ao contrário, cabe ao professor mover sua atenção sobre os novos revestimentos dos processos “colonizadores” existentes no mundo globalizado, o que seria um importante aspecto a considerar no que tange à importância da prática das danças brasileiras na escola. Nosso intuito é utilizar o exemplo do movimento mangue nesse momento do nosso texto, para refletirmos sobre a relação da escola com os saberes artísticos que são produzidos na sociedade.

Como se dá a relação da escola com a arte que é produzida fora dela? Por que não enxergar na relação com os movimentos artísticos, com os artistas, com suas obras e suas poéticas, a possibilidade de extrair subsídios para a criação de alternativas de uma aproximação real da criança e do jovem com as tradições culturais de seu país e região, através da criação de experiências significativas que não atinjam apenas a ordem do discurso, desatrelado da experiência de modo a garantir que a prática, a reflexão e a contextualização estejam interligadas numa abordagem triangular do ensino da dança (Cf. BARBOSA, 1991; 2005), permitindo a construção de sentidos, e assim re-significando essas danças no mundo contemporâneo?

Quando acima nos referimos a uma aproximação real, falamos de um interesse pela dança no sentido do prazer e da curiosidade que a relação com esta manifestação possa suscitar, da produção de conhecimentos que uma abordagem triangular possa trazer e a possibilidade de ver o mundo sobre outra ótica a partir desta experiência.

Como aponta Ana Mae Barbosa (2000:171), para que o ensino da Arte seja eficiente é preciso partir da experiência artística ou do universo de apreciação estética do grupo de alunos: “só assim essa aprendizagem se tornaria algo mais que uma colagem cultural sem suporte contextual”.

Seria limitado e simplificador pensarmos, por exemplo, que pelo fato de uma criança ser alagoana, o Coco seja uma manifestação de dança com a qual ela tenha identificação. É preciso considerar a importância de conhecer a prática social imediata do aluno em relação ao conteúdo proposto (no caso, a dança do coco),e “também ouvi -lo sobre a prática social mediata, isto é, aquela prática que não depende diretamente do indivíduo, e sim das relações sociais como um todo” (Gasparin, 2002:15).

Não podemos pensar em identidade sem identificação. É claro que só é possível se identificar com aquilo que se conhece, portanto, é preciso proporcionar o acesso, o contato dos alunos com essas danças. A questão aqui colocada recai sobre o modo comoesse acesso se dá.

A relação entre teoria e prática colocada no processo de ensino das danças brasileiras ainda parece-nos muito atrelado a um discurso vinculado à preocupação com as referências históricas voltadas ao encontro de uma possível origem, de uma espécie de “arvore genealógica” dessas danças, sem a preocupação com uma abordagem teórica mais articulada à prática, e que vislumbre o desenvolvimento do pensamento reflexivo e da busca das inter-relações entre passado, presente e futuro numa perspectiva espaço/tempo certamente mais próxima a uma espiral que a uma linha reta.
Para que um circuito discursivo qualquer se complete, é preciso que haja
algum tipo de adequação entre suas significações e o sistema de
representações dos receptores. Em outros termos, é necessário que o
discurso produza alguma ressonância junto àqueles aos quais se dirige,
caso contrário nada significará, ou melhor, poderá ter sentido, mas não
“fará sentido” – será inverossímil – para os receptores. (MAGNANI,
1984, p. 192).

É comum na nossa realidade local, alagoana, que os professores validem a qualidade do seu trabalho em função da preocupação com a informação histórica sobre a dança. Longe de negarmos essa importância, queremos mais uma vez chamar a atenção para a questão do como.

Vejamos um exemplo bem característico de nossa realidade local: aqui em Maceió é comum que as crianças e os jovens tenham a informação de que o Coco é dançado (ou era) por ocasião da tapagem de casas de pau-a-pique na zona rural. Essa informação é dada pelo professor que acredita ser fundamental trazer as referencias históricas sobre as origens dessa dança tradicional. Que identificação pode ter a criança e o jovem com esta peculiaridade da história do Coco? Como esta informação pode ser transformada em conhecimento para que, a partir daí, os alunos encontrem alguma relação de sentido ao contextualizar essa dança? Como esta característica peculiar ao Coco pode suscitar reflexões relacionadas com a realidade vivida pelos alunos?

Poderíamos lançar algumas proposições pensando em estabelecer relações com:

- Aspectos estruturais da dança - observando a postura e o princípio de economia de esforço presente na técnica corporal empregada, o uso instrumental do corpo tanto na dança quanto na ação de trabalho de amassar o chão da casa (na dança do coco o dançarino é também percussionista na medida em que o som do sapateado estrutura a base rítmica da dança).

- Aspectos sócio-afetivos e políticos – o modo de organização social onde há uma ação coletiva para a construção de um bem individual, refletindo sobre os modos de relações humanas e de produção na sociedade atual, questões éticas, morais, etc.

Poderíamos pensar uma série de outros exemplos onde o professor pudesse fazer valer sua capacidade criadora rumo à transformação do que é eventual em processual, do que é informação em conhecimento. De modo a abrir as perspectivas sobre o conhecimento teórico onde este deixe de ser apenas “uma compreensão do que acontece”, e passe a ser “um guia para a ação” (CORAZZA, 1991, P.90). De forma que, cada aluno e a escola como um todo, torne-se sujeito e agente do processo de valorização da memória cultural do nosso país, nesse caso específico, das danças tradicionais. Assim, ao inter-relacionar teoria e prática criar um real sentido para justificar a importância das danças brasileiras na escola.

O que temos como pressuposto básico para a elaboração de uma proposta metodológica de ensino de danças brasileiras na escola é que estas se constituam tanto em um meio quanto em um fim: meio para adquirir conhecimentos, habilidades e capacidades relativas aos elementos constitutivos da linguagem da dança de um modo geral (corpo, ações, espaço, relacionamento, ritmo, dinâmica, etc.) além de possibilitar o conhecimento histórico e sócio-cultural via corpo, e fim porque objetiva o aprendizado do repertório específico dessas danças.

Utilizando as palavras de Barba (1994), acreditamos ser possível levar nossas crianças e jovens a perceber que “...o que pertence a nossa tradição e aparece como uma realidade óbvia pode, em vez disso, revelar-se como um nó de problemas inexplorados.” Ao manipularmos esses nós poderemos realizar descobertas sobre nós mesmos e sobre o mundo, existindo ainda a possibilidade de achar no óbvio a unidade do que nele há de universal.

Quando os jovens artistas pernambucanos instituíram o movimento mangue beat provocaram a comunicação e a retro-alimentação contínua entre classes sociais e saberes artísticos diversos. Ao mesmo tempo em que novos objetos artísticos surgiam, imbuídos de uma natureza universal com base em características culturais locais, que deram visibilidade nacional e internacional aos artistas pernambucanos e as obras, as manifestações tradicionais também evoluíram tanto em termos qualitativos na transformação estética, quanto em termos quantitativos no que se refere à criação de novos grupos e a ampliação do número de integrantes nos grupos já existentes.

Este tipo de comunicação extrapola o caráter meramente difusionista, configurando seu caráter inclusivo, na medida em que o artista da tradição passa a tomar parte do circuito artístico-cultural tanto local quanto nacional e internacional redimensionando o seu fazer e o seu lugar na sociedade; redirecionando o interesse e o reconhecimento da importância das manifestações da tradição popular para as gerações futuras, para os filhos dos mestres e integrantes de suas comunidades a quem cabe, de modo mais direto, a continuidade da tradição.

Há de ser pensado o papel da escola enquanto mediadora social no sentido de fomentar a comunicação entre os alunos e as tradições populares locais por meio de uma comunicação profunda, na acepção de Martin-Barbero (2003), assumindo os conflitos que toda comunicação dessa natureza implica em termos de possibilidades de transformação cultural.
Diante do discurso que vê as culturas tradicionais apenas
como algo a ser conservado, cuja autenticidade se
encontraria somente no passado para o qual qualquer
intercâmbio aparece como contaminação, é em nome
daquilo que em tais culturas tem direito ao futuro que
se faz necessário afirmar: não é possível ser fiel a
uma cultura sem transformá-la...
(Martin-Barbero. Idem: 68)
Nesta perspectiva, parece-nos urgente retirarmos a escola do lugar de agente colaboradora nos processos de preservação do nosso folclore e situá-la no terreno da mediação social enquanto promotora da comunicação entre diferentes saberes produzidos pela sociedade.

Assim, penso que a pergunta inicial e prioritária não seria qual dança ensinar na escola, mas sim por quê, para quê e para quem ensinar. E que ao efetuarmos escolhas, devemos buscar coerência na construção de processos de ensino/aprendizagem cujas premissas fundamentais sejam: a construção de sentidos, a relação de prazer e a produção de conhecimento.

REFERÊNCIAS
BARBA, Eugênio. A Canoa de Papel – Tratado de Antropologia Teatral. São
Paulo: HUCITEC, 1994.
BARBOSA, Ana Mae. John Dewey e o ensino da arte no Brasil. 5. ed.
São Paulo: Cortez, 2000.
____________A imagem no ensino da Arte: anos 80 e novos tempos.
3.ed. São Paulo: Perspectiva, 1991.
BORNHEIM, Gerd et. al. Cultura Brasileira: Tradição, Contradição. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor/Funarte. 2ª ed. 1997. 152 p.
CORAZZA, S.M. (1991) “Manifesto por uma dida – lé-tica”. Contexto e Educação,
Ijuí,vol. 6,n. 22,pp. 83-99, abr.-jun.
GASPARIN, João Luiz. Uma Didática para a Pedagogia Histórico-Crítica. Campinas _
SP: Autores Associados,2002. (Coleção Educação Contemporânea).
191p.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP& A,
2004.
LEPECKI, André. O Corpo Colonizado. Gesto: Revista do Centro Coreográfico – Rio
de Janeiro, n°2. julho, 2003.
MAGNANI, J.G.Cantor. Festa no pedaço. Cultura Popular e Lazer na Cidade. São
Paulo: Brasiliense, 1984.
MARTÍN, BARBERO. J. Dos meios às Mediações: comunicação, cultura e
hegemonia. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ,1997.
___________Globalização comunicacional e transformação cultural. In
MORAES, Denis (organizado por). Por uma outra comunicação.
Mídia, mundialização cultural e poder. Rio de Janeiro: Record,
2003.
STRAZZACAPPA, Márcia.Dançando na chuva... e no chão de cimento. In
FERREIRA, Sueli (organizado por). O ensino das Artes: construindo
caminhos. Campinas -SP: Papirus, 2001. p. 39 -78.
VICENTE, Valéria. Maracatu Rural: o Espetáculo como Espaço Social. Recife: Ed.da
Associação Reviva, 2005.

[1]È alagoana, mestre em Artes/Dança pela Unicamp, professora do Curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal de Alagoas.
[2]O movimento mangue beat surgiu na cidade do Recife no início da década de noventa do século XX liderado por artistas como Chico Science e Fred “Zero Quatro”. Ganhou repercussão nacional e internacional sobretudo através da banda Chico Science e Nação Zumbi em cujo CD de lançamento“Da lama ao caos” consta um texto de referência sobre o conceito do Movimento.

Sociedade Anônima 

(Texto publicado em O Jornal  Maceió, 21-09-2006, p.B3, c.2)
                                                                                                         Telma César



É no decorrer do século XX que o corpo no teatro passa a ser reconhecido como texto e os limites entre a dança e o teatro tornam-se cada vez mais difusos ao tempo em que se ampliam as possibilidades de interfaces entres as duas linguagens.

Thereza Rocha (2000:143), observa que “de certo modo, a partir da década de 60, as artes da cena emudeceram”; nesse ambiente, criadores e espectadores desvinculam-se do discurso enquanto mediador entre o que se ver e aquilo que se pensa, ficando o corpo no centro da cena.

Há então, uma tendência ao surgimento de trabalhos que situam-se a meio caminho entre o teatro e a dança, impossibilitando qualquer tentativa de padronização categorizada. Os artistas caminham na direção da arte conceitual onde eles próprios se localizam na busca de sua identidade estética. Nesse contexto, irão surgir inúmeras nomenclaturas para denominar diferentes modos de construir esteticamente, poderíamos citar como exemplos: Teatro Físico, Teatro do Corpo, Teatro do Movimento, Teatro do Silêncio, Dança -Teatro.

Essas diferentes nomenclaturas surgem para designar os modos particulares como cada artista processa a experiência contemporânea. Esta diversidade encontra a unidade na relação com o corpo enquanto centro da cena, mas, as especificidades de suas poéticas e a forte marca de cada personalidade imprimida em suas estéticas traçam os diferenciais.

Designado como dança-teatro, o espetáculo “Sociedade Anônima”, dirigido por Jorge Schutze, marca a estréia da recém criada CIA Ltda. Longe de se ater aos possíveis limites de qualquer identidade estética o trabalho da CIA (apesar do nome Ltda. – limitada) busca a investigação sobre o corpo e suas inúmeras possibilidades de expressão considerando as singularidades de cada intérprete/criador. Neste sentido, estabelece o trânsito entre corporeidade e fisicalidade para compor um procedimento unificado entre técnica, invenção e expressão do ator-dançarino.

No trabalho de Jorge schutze o corpo em ação é conhecimento materializado em criação artística. Ao ler o realese do espetáculo percebemos uma forte coerência entre as questões que motivaram a criação e o domínio do léxico da dança para construir o texto do movimento. Longe de semantizar sua dança em simbolismos e significados fechados, ao contrário, lança-se à construção de imagens capazes de dialogar com o universo particular de cada espectador e re-elaborar-se em outras tantas imagens, sensações e percepções de cada ser que recepciona o espetáculo.

A maturidade artística e competência profissional de Schutze, permite-lhe otmizar magnificamente as singularidades dos intérpretes/criadores que integram o espetáculo – Magnum Ângelo e Consuelo Maldonado. Considerando os conhecimentos específicos de cada corpo e as qualidades dinâmicas presentes na movimentação de cada um, as diferenças aparecem como contrapontos eficazes à estruturação rítmica do espetáculo. O talento promissor de Ângelo Magnum e a precisão impecável de Consuelo Maldonado constroem um encontro fortuito, brilhantemente valorizado pelo diretor.

Nesse espetáculo, o ritmo, como lei intrínseca à dança, aparece como elemento fundamental para retirar o corpo em movimento do limite da significação. É ele, o ritmo, que destrói a tríade figuração/narratividade/representação, e nos propõe uma espécie de mecanicidade expressiva capaz de nos atingir cinestesicamente.

Nas palavras de Jorge Schutze o espetáculo “procura nas cinzas de nossa incongruência, no corpo, e em nossos desejos uma falha gestual que nos denuncie e nos revele.”

“Sociedade Anônima”tira-nos do anonimato quando nos propõe, na suspensão de cada gesto, inúmeras identificações que a um só tempo nos tornam tão iguais, coletivos e, ao mesmo tempo, tão únicos. Nos impõem a pausa que nos faz ver, nos faz perceber, o tempo que nos privamos a vivenciar. A opção por pausar é de cada um!

Baianas

(texto de encarte do CD baianas  de Coqueiro Seco do selo Mundo Melhor)

Telma César[1]

A brincadeira

Grupo de mulheres vestidas com longas saias rodadas, muitos balangandãs no torso e divididas em dois cordões - um azul e o outro encarnado. Têm ao centro uma mestra que direciona o grupo apitando, cantando versos que antes eram  improvisados e que hoje são relembrados; já não se improvisa mais. Versos que falam de amor, de coisas do dia a dia, de casos da história ou de estórias.  Contam que algumas mestras se desafiavam em versos, sendo a Mestra Terezinha uma das mais famosas. Cantava ela:

Mestra Terezinha canta em tom de moda
toda mestra roda, minha rima é de amargar
ô meu baianá responda essa peça
que é p’ra outra mestra ver e não poder pegar

Dançam ao som de zabumba, ganzá e, em alguns grupos, também de um tarol, no ritmo da marcha ou do abaianado. A coreografia simples se estrutura na sincronicidade dos movimentos para os lados e em deslocamento das filas/cordões das dançarinas, que se locomovem enquanto a mestra apita. Neste momento, o som é apenas o da banda, sem o acompanhamento do canto.
Há grupos onde, além da mestra e das baianas, encontra-se também a contra-mestra e a diretora, ambas ao centro, entre as duas fileiras. Uma de cada lado da mestra. 

A descrição acima dá conta da configuração atual da brincadeira. Abelardo Duarte (1974 P.359) enumerou uma série de afinidades das baianas com os antigos reisados, como, por exemplo, os personagens comuns: Mateus, Mestres, Contra-Mestres, Embaixadores etc. Cita também similaridades com relação ao figurino na utilização de espelhos em peitorais. Com relação à transformação neste figurino diz ele: “Já aparecem as figuras femininas, as ’baianas’, transformadas em ‘pastoras’ modernas (tipo Sul), pastoras criadas por Ataulfo Alves, no Rio (...) o que em verdade se oferece como uma deformação, sem dúvida imposta pela época. É a ‘bossa nova’ “ (op. cit. P.360). Além desses aspectos refere-se ainda, o mesmo autor, a elementos musicais não mais presentes atualmente como a denominação “pancada motor”, antes utilizada para designar a vivacidade rítmica presente na música das Baianas; além do uso de instrumentos como pífanos e, por vezes, também a cuíca.

As Baianas alagoanas vieram de Pernambuco

Tal afirmação parece “truncada”, a princípio, mas aponta para o trânsito percorrido pela brincadeira das baianas encontrada em Alagoas, cujo trajeto geo-histórico parece-nos interessante visitar para um melhor entendimento das atuais configurações da brincadeira.

A princípio, o termo “baiana ” sugere uma indicação de pertencimento ao estado da Bahia, assim como o é de fato: é denominada baiana a mulher que nasce na Bahia. Mas, é fato também, a figura da baiana como de uma mulher que veste longas saias rodadas e se enfeita com mil balangandãs, estando presente em várias danças das tradições populares que integram o grande complexo do samba no Brasil; seja nos desfiles das escolas de samba cariocas, nas sambadas de maracatu ou no samba de matuto, só para citar alguns exemplos.

É deste último, do samba de matuto do sul de Pernambuco, que é oriunda a brincadeira das baianas encontrada em Alagoas. Segundo Théo Brandão (1961:183), as baianas teriam adentrado em Alagoas a partir da primeira década do século XX como club de carnaval passando posteriormente, nas décadas de 1930 e 1940 do mesmo século, à função natalina.

Embora Théo Brandão localize esta passagem da função carnavalesca para a natalina, não irá adentrar nos porquês deste trânsito. Já para Abelardo Duarte, que sobre a matéria se baseia grandemente em Théo Brandão, a origem rural dos grupos de baianas estaria diretamente ligada ao universo dos engenhos e usinas de açúcar, o que, para ele, explicaria a tendência de antigos grupos de baianas em que “as letras dos sambas e peças quase só aludem a usinas” (cf. DUARTE, op. cit. P. 358). Muito provavelmente, a sazonalidade do trabalhador rural canavieiro, entre Alagoas e Pernambuco, colaborou para a circulação desta modalidade de folguedo. Estudos recentes sobre a história cultural da presença negra em Alagoas, mais especificamente aqueles que tratam sobre os temas “da religiosidade afro-brasileira e da cultura lúdica presente nos folguedos e nas festas dos ciclos populares, particularmente no carnaval” (CAVALCANTI, 2006:26), irão nos fornecer subsídios para um melhor entendimento desse processo, que se configura como certo mecanismo de resistência cultural.

Na Maceió da primeira década do século XX (período em que as baianas adentram o estado de Alagoas) a repressão às manifestações da cultura afro-alagoana estava no ápice de sua força. Exemplo maior foi a invasão maciça das casas e terreiros de xangô da cidade, em 1912, episódio que ficou conhecido como “o quebra de 1912” ou “Operação Xangô” (cf. RAFAEL,2004). Para vários autores, os acontecimentos de 1912 acabaram por incidir diretamente sobre as manifestações negro-alagoanas, notadamente aqueles que mais expressavam vinculações com crenças afro-brasileiras (cf. CAVALCANTI, op. cit.). Vale lembrar que no início do século XX os clubs de samba de matuto e de baianas eram ensaiadas por Babalorixás (Brandão, 1961:183). Talvez resida aí, nesse período da nossa história, alguma pista para o aparecimento de novos folguedos em Alagoas, como o Guerreiro, originado a partir do sincretismo de elementos dos antigos reisados e dos caboclinhos. Do mesmo modo, encontram-se misturados nas baianas, elementos do pastoril, do coco, do maracatu. José Maria Tenório Rocha (1984:115) entende que as baianas podem ser consideradas uma alagoanização dos maracatus pernambucanos. Não seria uma “ramificação estratégica” do próprio maracatu alagoano que se extinguiu? Ora, foram as manifestações lúdicas embutidas sob a batuta do folclore que puderam subsistir ante aqueles anos de perseguição às crenças e práticas mais africanizadas, mantendo, assim, sutis vínculos de africanidade na cultura popular folclórica do território alagoano, incorporando novas influências, mas, em todo caso, mantendo inequívocos sinais de tratar-se de uma de nossas manifestações culturais afro-alagoanas.

O fato é que os mestres e mestras de baianas, reisados, maracatus, cocos e tantos outros folguedos, são artistas, sensíveis ao seu tempo/espaço de convivência com a realidade da qual fazem parte e na qual movem seus espíritos criativos.


Baiana se quer viver
Tem que quebrar pra Jesus
Ir dançar pelo natal
Vestir azul e encarnado
Fazer samba atravessado
Benzer em nome da cruz
Tem que rebolar batido
Pra esconder o Egito
Que dentro dela ela traz                                         
                                         (Telma César)

Baiana Volta a Sorrir e nós também

O nome do grupo de baianas de Coqueiro Seco “Baiana volta a sorrir”, é bem representativo da história dessa manifestação na referida cidade. Entre os anos de 1958 à 2005 não se ouviu o toque das baianas por lá. Já há algum tempo venho freqüentando a cidade, desfrutando dos ensinamentos dos mestres Cajuza (que Deus o tenha) e Zé Um e da Mestra Luzia, todos integrantes da chegança Silva Jardim. Mas, em todo esse tempo não tinha ouvido falar em baiana em Coqueiro Seco. Foi Renata Mattar, que, em Fevereiro de 2005 descobriu Mestra Dulce, quietinha em sua casa, guardando um repertório musical maravilhoso! A maioria das músicas cantadas por ela eu nunca tinha ouvido nos outros grupos de baianas que eu já conhecia. Ao mesmo tempo, apresentou músicas bem tradicionais, como as encontradas por Théo Brandão (1961) e Alceu Mainard, em Piacabuçu-Al, em 1952. A partir daí foi grande a nossa inquietação em ver as baianas de Coqueiro Seco voltarem à ativa.

Em novembro de 2005, Lucimar (a melhor agente cultural que eu já conheci) nos fez sorrir quando deu a grande notícia de que ia “botar a baiana”. No primeiro ensaio das baianas que assisti, lembro-me do impacto em ver aquelas mulheres que eu conhecia dançando Chegança, vestidas em roupas de marinheiros e generais, dançando ao som do abaianado, rodando suas saias e cantando com uma força estonteante. Foi impossível ficar parada! Foi impossível ficar calada! Penso que nenhuma mulher ficaria, tamanha a energia feminina que emanava daquele grupo.

A baiana de Coqueiro Seco tem a particularidade de utilizar o tarol em seu instrumental, o que lhe confere uma sonoridade diferenciada dos demais grupos de Alagoas. Além disso, a musicalidade que é tão forte em Coqueiro Seco, já conhecida pelo grande número de bandas da pequenina cidade e pelo afinado coro de vozes do Pastoril e da Chegança, confere algo de muito especial a esse grupo que impulsiona ao movimento quem está a assisti-las ou a ouvi-las.

Esse projeto musical que eu e Renata realizamos em 2005, foi compartilhado também por Alfredo Bello que nos traz, com sua iniciativa de produzir este CD através do selo “Mundo Melhor”, a possibilidade de mais um sorriso que agora será compartilhado por todos, e, esperamos, pelo maior número possível de pessoas! Afinal, esse é o primeiro CD de Baianas.

Desde a gravação do compacto em vinil n° 21 da coleção Documento Sonoro do Folclore Brasileiro da Funarte em 1977, que registrou as baianas da Mestra Terezinha, tivemos apenas duas faixas da Mestra Maria José Silvino (Baianas Mensageiras de Santa Luzia) na Coletânea Música do Brasil de 2000. Mestra Maria José Silvino já se foi e sua maestria merecia mais, assim como tantas outras mestras já se foram. Mestra Dulce, Mestra Luzia e todas as baianinhas de Coqueiro Seco permanecem e permanecerão na memória e nos sorrisos dos que lhes ouvirão e com certeza, desfrutarão de grande alegria! Alegria para um mundo melhor!


Referências

BRANDÃO Théo. Folguedos Natalinos de Alagoas. Maceió:DAC, série Estudos
                  Alagoanos, Caderno n° IX, 1961, 213p.
CAVALCANTI, Bruno César. “Bons e Sacudidos – o carnaval negro e seus
                  impasses em Maceió” . In CAVALCANTI, B. C. ; FERNANDES, C. S.
        e BARROS, R.R. de A. (orgs.) Kulé-Kulé: visibilidades negras.
        Maceió: EDUFAL, 2006, pp.26-40.
DUARTE, Abelardo “Baianas”. In Folclore Negro das Alagoas.
        Maceió: Departamento de Assuntos Culturais, 1974, pp. 355-369.
RAFAEL, Ulisses Neves. “Xangô Rezado Baixo: um estudo da perseguição    
            aos terreiros de Alagoas em 1912”. Rio de Janeiro: Universidade  
                 Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
                 2004. Tese de Doutorado, 262p.
ROCHA, J. Mª. Tenório - Folguedos e Danças de Alagoas: Sistematização e
             Classificação. Editado pela SEED do Estado de Alagoas, 1984.



BAIANAS

Telma César[2]

A brincadeira

Grupo de mulheres vestidas com longas saias rodadas, muitos balangandãs no torso e divididas em dois cordões - um azul e o outro encarnado. Têm ao centro uma mestra que direciona o grupo apitando, cantando versos que antes eram improvisados e que hoje são relembrados; já não se improvisam mais. Versos que falam de amor, de coisas do dia a dia, de casos da história ou de estórias.  Contam que algumas mestras se desafiavam em versos, sendo a Mestra Terezinha uma das mais famosas. Cantava ela:

Mestra Terezinha canta em tom de moda
toda mestra roda, minha rima é de amargar
ô meu baiana responda essa peça
que é p’ra outra mestra ver e não poder pegar

Dançam ao som de zabumba, ganzá e, em alguns grupos, também de um tarol, no ritmo da marcha ou do abaianado. A coreografia simples se estrutura na sincronicidade dos movimentos para os lados e em deslocamento das filas/cordões das dançarinas, que se locomovem enquanto a mestra apita. Neste momento, o som é apenas o da banda, sem o acompanhamento do canto.
Há grupos onde, além da mestra e das baianas encontra-se também a contra-mestra e a diretora, ambas ao centro, entre as duas fileiras. Uma de cada lado da mestra. 

A descrição acima dar conta da configuração atual da brincadeira. Abelardo Duarte (1974 P.359), enumerou uma série de afinidades das baianas com os antigos reisados, como, por exemplo, os personagens comuns: Mateus, Mestres, Contra-Mestres, Embaixadores etc. Cita também similaridades com relação ao figurino na utilização de fitas nos chapéus e espelhos em peitorais. Com relação a transformação neste figurino diz ele: “Já aparecem as figuras femininas, as ’baianas’, transformadas em ‘pastoras’ modernas (tipo Sul), pastoras criadas por Ataulfo Alves, no Rio (...) o que em verdade se oferece como uma deformação, sem dúvida imposta pela época. É a ‘bossa nova’ “ (idem,P.360). Além desses aspectos refere-se ainda, o mesmo autor, a instrumentos como pífanos e, por vezes, também a cuíca.

As Baianas alagoanas vieram de Pernambuco

Tal afirmação parece “truncada”, a princípio, mas aponta para o trânsito percorrido pela brincadeira das baianas encontrada em Alagoas, cujo trajeto geo-histórico parece-nos interessante visitar para um melhor entendimento das atuais configurações da brincadeira.

A princípio, o termo “baiana ” sugere uma indicação de pertencimento ao estado da Bahia, assim como o é de fato: é denominada baiana a mulher que nasce na Bahia. Mas, é fato também, a figura da baiana como de uma mulher que veste longas saias rodadas, e se enfeita com mil balangandãs, está presente em várias danças das tradições populares que integram o grande complexo do samba no Brasil; sejam nos desfiles das escolas de samba cariocas, nas sambadas de maracatu ou no samba de matuto, só para citar alguns exemplos.

É deste último, do samba de matuto do sul de Pernambuco, que é oriunda a brincadeira das baianas encontrada em Alagoas. Segundo Théo Brandão (1961:183), as baianas teriam adentrado em Alagoas a partir da primeira década do século XX como club de carnaval passando posteriormente, nas décadas de 1930  e 1940 do mesmo século, à função natalina.

Embora Théo Brandão localize esta passagem da função carnavalesca para a natalina, não irá adentrar nos porquês deste trânsito. Já para Abelardo Duarte, que sobre a matéria se baseia grandemente em Théo Brandão, a origem rural dos grupos de baianas estaria diretamente ligada ao universo dos engenhos e usinas de açúcar, o que, para ele, explicaria a tendência de antigos grupos de baianas em que “as letras dos sambas e peças quase só aludem a usinas” (cf. DUARTE, 1974:358). Muito provavelmente, a sazonalidade do trabalhador rural canavieiro, entre Alagoas e Pernambuco, colaborou para a circulação desta modalidade de folguedo. Estudos recentes sobre a história cultural da presença negra em Alagoas, mais especificamente aqueles que tratam sobre os temas “da religiosidade afro-brasileira e da cultura lúdica presente nos folguedos e nas festas dos ciclos populares, particularmente no carnaval” (CAVALCANTI, 2006:26) irão nos fornecer subsídios para um melhor entendimento desse processo, que se configura como certo mecanismo de resistência cultural.

Na Maceió da primeira década do século XX (período em que as baianas adentram o estado de Alagoas) a repressão às manifestações da cultura afro-alagoana estava no ápice de sua força. Exemplo maior foi a invasão maciça das casas e terreiros de xangô da cidade, em 1912, episódio que ficou conhecido como “o quebra de 1912” ou “Operação Xangô” (cf. RAFAEL,2004). Para vários autores, os acontecimentos de 1912 acabaram por incidir diretamente sobre as manifestações negro-alagoanas, notadamente aqueles que mais expressavam vinculações com crenças afro-brasileiras (cf. CAVALCANTI, op. cit.). Talvez resida aí alguma pista para o aparecimento de novos folguedos em Alagoas, como o Guerreiro, originado a partir do sincretismo de elementos dos antigos reisados e dos caboclinhos. Do mesmo modo, encontram-se misturados nas baianas, elementos do pastoril, do coco, do maracatu. José Maria Tenório Rocha (1984:115) entende que as baianas podem ser consideradas uma alagoanização dos maracatus pernambucanos. Não seria uma “ramificação estratégica” do próprio maracatu alagoano que se extinguiu? Ora, foram as manifestações lúdicas embutidas sob a batuta do folclore que puderam subsistir ante aqueles anos de perseguição às crenças e práticas mais africanizadas, mantendo, assim, sutis vínculos de africanidade na cultura popular folclórica do território alagoano, incorporando novas influências, mas, em todo caso, mantendo inequívocos sinais de tratar-se de uma de nossas manifestações culturais afro-alagoanas.

O fato é que os mestres e mestras de baianas, reisados, maracatus, cocos... são artistas, sensíveis ao seu tempo/espaço de vivência e convivência com a realidade da qual fazem parte e na qual movem seus espíritos criativos.

Baiana se quer viver
tem que quebrar prá Jesus
ir dançar pelo natal
vestir azul e encarnado
fazer samba atravessado
benzer em nome da cruz
tem que rebolar batido
prá esconder o Egito
que dentro dela ela traz                                           (Telma César)
Baiana Volta a Sorrir  e nós também

O nome do grupo de baianas de Coqueiro Seco “Baiana volta a sorrir”, é bem representativo da história dessa manifestação na referida cidade. Entre os anos de 1958 à 2005 não se ouviu o toque das baianas por lá. Já há algum tempo venho freqüentando a cidade, desfrutando dos ensinamentos dos mestres Cajuza (que Deus o tenha) e Zé Um e da Mestra Luzia, todos integrantes da chegança Silva Jardim. Mas, em todo esse tempo não tinha ouvido falar em baiana em Coqueiro Seco. Foi Renata Mattar, que, em Fevereiro de 2005 descobriu Mestra Dulce, quietinha em sua casa, guardando um repertório musical maravilhoso! A maioria das músicas cantadas por ela eu nunca tinha ouvido nos outros grupos de baianas que eu já conhecia. Ao mesmo tempo, apresentou músicas bem tradicionais, como as encontradas por Théo Brandão (1961) e Alceu Mainard em Piacabuçu-Al em 1952. A partir daí foi grande a nossa inquietação em ver as baianas de coqueiro seco voltarem à ativa.

Em novembro de 2005 a Lucimar (melhor agente cultural que eu já conheci) nos fez sorrir quando deu a grande notícia de que ia “botar a baiana”. No primeiro ensaio das baianas que assisti, lembro-me do impacto em ver aquelas mulheres que eu conhecia dançando chegança, vestidas em roupas de marinheiros e generais, dançando ao som do abaianado rodando suas saias e cantando com uma força estonteante. Foi impossível ficar parada! Foi impossível ficar calada! Penso que nenhuma mulher ficaria, tamanha a energia feminina que emanava daquele grupo.

A baiana de Coqueiro Seco tem a particularidade de utilizar o tarol em seu instrumental, o que lhe confere uma sonoridade diferenciada dos demais grupos de Alagoas. Além disso, a musicalidade que é tão forte em Coqueiro Seco, já conhecida pelo grande número de bandas na pequenina cidade e pelo afinado coro de vozes do Pastoril e da Chegança, confere algo de muito especial a esse grupo que impulsiona ao movimento quem está a assisti-las ou a ouvi-las.

Tudo isto não poderia ficar restrito ao universo de Coqueiro Seco e para nossa alegria, a primeira vez que a baiana “saiu”  tivemos o privilégio  de tê-las se apresentando na estréia do show do nosso projeto musical que integrou a programação do Festival de Música Independente - FMI em Maceió.

Esse projeto musical que eu e Renata realizamos em 2005, foi compartilhado também por Alfredo Bello que nos traz, com sua iniciativa de produzir este CD através de seu selo independente “Mundo Melhor”, a possibilidade de mais um sorriso que agora será compartilhado por todos, e, esperamos, pelo maior número possível de pessoas!

Desde a gravação do compacto em vinil da coleção sonora do Folclore Brasileiro em 19?? que registrou as baianas da Mestra Terezinha, tivemos apenas uma faixa da Mestra Maria Silvino na Coletânea Músicas do Brasil de 20??. Mestra Maria Silvino já se foi e sua maestria merecia mais, assim como tantas outras mestras já se foram. Mestra Dulce, Mestra Luzia e todas as baianinhas de Coqueiro Seco permanecem e permaneceram na memória e nos sorrisos dos que lhes ouvirão e com certeza, desfrutarão de grande alegria! Alegria para um mundo melhor!


Referências

BRANDÃO Théo. Folguedos Natalinos de Alagoas. Maceió:DAC, série Estudos
                  Alagoanos, Caderno n° IX, 1961, 213p.
CAVALCANTI, Bruno César. “Bons e Sacudidos – o carnaval negro e seus
                  impasses em Maceió” . In CAVALCANTI, B. C. ; FERNANDES, C. S.
        e BARROS, R.R. de A. (orgs.) Kulé-Kulé: visibilidades negras.
        Maceió: EDUFAL, 2006, pp.26-40.
DUARTE, Abelardo “Baianas”. In Folclore Negro das Alagoas.
        Maceió: Departamento de Assuntos Culturais, 1974, pp. 355-369.
RAFAEL, Ulisses Neves. “Xangô Rezado Baixo: um estudo da perseguição    
            aos terreiros de Alagoas em 1912”. Rio de Janeiro: Universidade  
                 Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
                 2004. Tese de Doutorado, 262p.












[1] É alagoana, artista da dança e da música e é professora nos cursos de Licenciatura em Dança e em Teatro do ICHCA da UFAL.
[2] Dança, canta e é professora nos cursos de Licenciatura em Dança e em Teatro do ICHCA da UFAL.



Memória em movimento
                                                                                                      Telma César

(texto publicado no Caderno de Debates do Conselho Estadual de Comunicação do Estado de Alagoas, Maceió, N° 08, p. 08,  set/out 2004)

É recorrente ouvirmos falar que Alagoas é um dos, ou talvez o mais rico estado brasileiro em número de variações de danças e folguedos. Conta-se vinte e sete variações. Parece-nos ser hora de atualizarmos este discurso e nos darmos conta de que estamos falando de dados do passado, uma vez que estão inclusos nesta lista manifestações já extintas como é o caso por exemplo, do nosso maracatu.

Ficaríamos mais contentes se pudéssemos falar com a mesma ênfase sobre a adesão das novas gerações, a vitalidade das nossas manifestações, daquelas que estão vivas não apenas na memória, mas nos corpos dos que hoje cantam e dançam pulsando a memória em movimento. Se víssemos um movimento de renovação, de adesão das gerações mais jovens.

Não pretendemos aqui usar de um discurso também recorrente, sobre a falta de apoio do poder público aos grupos de folguedos, até porque, ultimamente algumas ações têm sido implementadas neste sentido. O que pretendemos é instigar a reflexão sobre a natureza destas ações. Pensarmos até que ponto elas caminham no sentido de abarcar a preservação e o desenvolvimento das nossas tradições populares.

Quando falamos em desenvolvimento, nos referimos a indubitável necessidade de transformação para a sobrevivência de uma tradição. Tradição pressupõe passagem de uma geração à outra, fato que por sua vez tem como fluxo natural o processo de transformação e renovação. A pergunta que se faz é: o que está sendo feito no sentido de aproximar as novas gerações de suas raízes culturais?

Vemos que as ações as quais nos referimos anteriormente caminham em dois sentidos: na realização de apresentações de grupos de danças e folguedos em eventos de várias ordens e na inserção destas manifestações nas escolas.

Se hoje as danças e folguedos se desvinculam da festa e sobrevivem no contexto das apresentações, é preciso rever o formato destas apresentações. Talvez não caiba o modelo do palco/palanque distanciado da platéia que intimida o corpo/espectador a dançar, não permite escutar a piada do mateus, entender a poesia do mestre ou cantar junto com o coro.

Se o processo de aprendizagem informal que sempre caracterizou a transmissão do conhecimento destas danças hoje se desloca para a escola, talvez não seja suficiente a propagação de discursos, a simples reprodução dos modelos e a criação de grupos de folguedos nas escolas. Talvez precisemos criar estratégias, elaborar metodologias que dêm conta da aproximação do aluno através da re-significação destas danças no mundo contemporâneo.

Acreditamos ser necessário pensarmos em estratégias de aproximação entre diferentes gerações e classes sociais. Não através de discursos politicamente corretos mas através de ações que permitam aos jovens desvincular a idéia de tradição da idéia de estagnação e possam ver os mestres populares não apenas como guardiões da memória e do passado, mas como artistas, e como tal, em constante processo de criação. Muito ainda temos a refletir para que possamos otimizar ainda mais as boas iniciativas em prol da valorização das nossas tradições populares. Assim, quando buscarmos esta valorização ao invés de falarmos sobre “o que vem depois dos mestres” possamos falar sobre o que é contemporâneo a eles e com eles dialoga na construção de um presente ALAGOANO.

Telma César é Professora Ms. na disciplina Metodologia da
Dança no curso de Educação Física da Faculdade de Alagoas - FAL e diretora da Cia. dos Pés.

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